Convidado

Convidado

RFI Português

De segunda a sexta-feira (ou, quando a actualidade o justifica, mesmo ao fim de semana), sob forma de entrevista, analisamos um dos temas em destaque na actualidade.

Ouvir o último episódio:

"Quando a terra foge" é uma curta metragem do português Frederico Lobo, em cartaz na Quinzena dos cineastas, mostra paralela do Festival de cinema de Cannes. O projecto de exploração do lítio no norte de Portugal é o pretexto para este filme, com uma forte fibra social.

O realizador começa por se referir às suas expectativas quanto à sua presença neste certame.

"Na verdade, acho que a expectativa acaba por ser uma coisa mais abrangente do que Cannes, porque é o primeiro momento em que o filme vai ser mostrado em público, não é ?  Que vai haver uma projecção pública e em que o filme se vai confrontar, felizmente, numa sala de cinema com o público."

Relativamente a Cannes, precisamente, não é qualquer patamar, não é qualquer festival !

Como é que você está a viver o facto de se inserir nesta mecânica de um dos maiores, porventura o mais prestigioso dos certames da sétima arte?

"Na verdade, com alguma surpresa, expectativa: estou um bocado aberto ao que possa vir a acontecer.

Claro que para quem filma este tipo de atenção momentânea por parte de um festival com esta dimensão, tem um valor que é a possibilidade que nos dá enquanto realizadores ou ajuda um bocadinho à possibilidade de continuarmos a filmar.

Muito honestamente, para mim é o grande valor de estrear em Cannes. Obviamente que é o festival de referência que toda a gente sabe, não é?

Mas eu acho que num meio que é muito difícil muitas vezes de conseguir as condições para filmar, isto acaba por acrescentar algum ponto à probabilidade de se fazer um próximo filme. Quanto a Cannes especificamente, vou com toda a curiosidade, não é?"

E vai estar a privar, por exemplo, com Inês Lima, que também lá estará com "O jardim em movimento". Imagino que tenha tido o interesse por ver que mais filmes são ali projectados. Portanto, como é que está a lidar com isso? O que é que vai tentar ver? Em que é que vai apostar?

"Eu acho que há algumas coisas que não vou conseguir ver e que gostava de ver, porque eu apenas vou conseguir ir nas datas da estreia do meu filme, que já é muito perto do final do festival.

Então vou tentar basicamente ver aquilo que está programado para esses dias. Tenho alguma curiosidade, obviamente, com os filmes portugueses por... não é assim tão comum !"

Por afinidade !?

"Por afinidade ou por, de repente, um festival desta escala, ter uma presença portuguesa tão alta!

Eu acho que é um sinal também de que, num meio tão pequeno como é o cinema em Portugal, conseguir produzir neste número de filmes que acabam por ser seleccionados, em Cannes em diferentes secções !

E eu acho que acaba por trazer razão de alguma forma ou por dar um bocadinho de alento nesta luta permanente que existe também na procura dos financiamentos e nesta relação com o Instituto de Cinema Português, acaba por ter com o seu próprio cinema.

E é óbvio que tenho muita curiosidade para ver os filmes portugueses e não vou ter a grande oportunidade de os ver todos, mas seguramente que depois terei mais possibilidade, espero que os filmes possam também circular depois do festival."

No seu filme aborda-se a questão da exploração do lítio em Trás-os-Montes, que indirectamente já levou à queda do governo socialista português de António Costa, que é uma situação que também é retratada em "A Savana e a Montanha", um outro filme que está em projecção em Cannes.

O que é que pretendeu com este filme que parece estar algo entre o documentário e a ficção, com uma certa dicotomia entre a maquinaria, por um lado, e o mundo rural, por outro, duas lógicas que estariam aí em oposição?

"Sim, eu acho que, antes de mais, o filme acaba por ser realmente esse híbrido, se assim podemos chamar.

Mas eu acho que é um filme que acaba por ter um pendor, apesar da matriz que se pode assumir como documental, tem um pendor de ficção bastante grande.

Para mim, esta questão da mineração acaba por ser uma questão que não é uma questão isolada, que é uma coisa que ao longo dos séculos, principalmente, eu diria desde a Revolução Industrial, aumentou exponencialmente.

Mas esta questão do progresso e da forma como se relaciona com os territórios e com as suas populações.

É uma coisa que, por exemplo, na própria zona de Trás-os-Montes já teve um impacto muito grande, tanto com as minas de volfrâmio que existiam e que encerraram no seguir à II Guerra Mundial, se não me engano a década de 60.

Este mega projecto de mineração que vai ocupar ou que pretende ocupar uma escala de território imensa relacionado com a escala, o território, a zona do Barroso é uma coisa que também já tem antecedentes.

Com tanto questões extractivistas como esta do volfrâmio, de que estava a falar, como por exemplo, com a construção de barragens, construção de barragens que acabaram por submergir aldeias inteiras.

Nesta questão da produção de energia e de manter um bocado a roda sempre a circular."

Ou seja, é um bocado inevitável esta oposição entre o desejável desenvolvimento económico de regiões até bastante atrasadas em termos de acolhimento e depois o respeito do meio ambiente e o respeito também das pessoas localmente.

"Sim, eu acho que isso pode ser visto de alguma forma, de uma forma falaciosa. Se olharmos para o funcionamento daquilo que pode ser chamado a economia de mercado e que neste momento assume um pendor totalitário sobre as nossas vidas.

Muitas vezes estas promessas de desenvolvimento económico não estão directamente ligadas a melhor condições de vida.

Ou seja, eu não acho, por exemplo, que Trás os Montes seja uma região atrasada. Não considero isso.

Por exemplo, no meu filme acabo por me remeter a coisas que considero mais ancestrais. Mas há todo um processo de ficção que cruza histórias e memórias com espaços a uma montagem ficcional que faço a partir dali.

Mas eu de forma alguma sinto que seja uma região que esteja atrasada. Acho que é uma região que dá a possibilidade à criação de outros mundos que talvez possam não obedecer na sua totalidade ou ainda tenham alguma forma de lidar de forma com um bocadinho de mais margem... basicamente o capitalismo global. Mas não considero que sejam regiões atrasadas, mas..."

Marcadas pelo êxodo rural, por uma grande hemorragia de recursos humanos para o litoral e para o estrangeiro.

"Claro, claro, Eu acho que isso também obedece realmente... bom, para já, uma história recente, não é?

Não se pode esquecer uma ditadura que durou quase 50 anos e que depois foi substituída por uma febre talvez demasiado forte sobre esta ideia de progresso.

Há outras formas que possam permitir às pessoas ficarem nos seus sítios e acho que é isso que se deve pensar.

Pessoalmente, e acho que isto acaba por extrapolar o próprio filme, mas para mim é uma questão que está lá do início ao fim.

Mas eu acho que muitas vezes esta imposição económica ou esta imposição numa perspectiva de progresso económico, acaba por ter um impacto que às vezes acaba por ser não tão recompensante para as pessoas que habitam ali e que já têm as suas vidas de alguma forma montadas.

Obviamente, passa sempre por uma luta. É uma região que toda a sua geografia tem tanto de bonito como de invernos inóspitos, muito mais no passado e agora,obviamente, as condições de vida são outras, mas são populações que obviamente lidavam com quase uma questão metereológica, quase e de agressividade de território de meio que acaba por esculpir carácteres também, não é?

Mas que obviamente acaba por também encontrar formas de resiliência e de resistência a essas questões.

Por isso eu acho que esta questão desta extracção está planificada para ali. Ou seja, se o plano destes grandes grupos económicos vai realmente para a frente, eu, pessoalmente, não acredito que isso vá trazer as mais valias que compense nem a perda de qualidade de vida no território.

E acho que às vezes estas coisas vêm tão atadas que o difícil é encontrar caminhos no meio. E acho que este filme é um bocado uma tentativa de encontrar um caminho aí no meio."

Mas para se chegar a "Quando a terra foge", você tem já por detrás cerca de duas décadas de cinema.

Então, passando muito rapidamente por alguns dos momentos que você já protagonizou entre "Bab Septa" em 2008. Já tinha havido antes o "Entre Tempos". Houve também a "Revolução Industrial", portanto colaborações com Pedro Pinho, com Pedro Hespanha, por exemplo.

E "Entre tempos" era a decadência da Feira Popular de Lisboa. Aquele recinto um pouco ao deus dará. A "Revolução Industrial", a descida do vale do Rio Ave, que foi o coração fabril daquela área e, portanto, "Bab Septa" o drama dos imigrantes às portas de Ceuta, entre Tânger e Ceuta.

Há assim, um fio condutor em relação aos temas os quais tenha apetite para ir fazendo o cinema que conhecemos da sua parte ?

"De uma forma geral eu acho que sim, pelo menos. Se calhar sou a única pessoa que sente isso.

Mas para mim, a linha entre estes filmes que possam ter formatos de produção, estéticas diferentes, formas de abordagem diferentes. Para mim há uma linha contínua que os atravessa a todos."

É a fibra social ?

"Eu acho que há uma relação social. Ao mesmo tempo acho que é muito uma questão como o ser humano vive o seu meio. E, obviamente, para mim, há uma questão que talvez possa ser considerada social, e um bocado mais genérica, que tem a ver com o que é que faz as pessoas mexerem-se, moverem-se com toda a legitimidade do mundo.

Mas eu acho que há um funcionamento do mundo. Então, nos dias que correm, confesso que acho que essa turbulência ainda está mais acentuada!

Ou seja, tanto a tragédia da imigração e as mortes no Mediterrâneo e no Atlântico não param, como o genocídio de Gaza. Acho que é uma questão super forte ! E acho que, de alguma forma, tento abordar coisas em que sinto que há realmente um desequilíbrio gigante entre as forças de alguma forma.

E que tanto obrigam as pessoas a partir como as que ficam, mais tarde ou mais cedo podem-se sentir também atacadas, não sei.

E acho que toda esta questão de relação com o espaço e dos filmes muitas vezes partirem do próprio espaço. Acho que isso acaba por ser um de alguma forma, uma marca, ou seja, não um espaço absolutamente real, mas sim um espaço geográfico específico, que pode ser tanto o móvel, como foi no caso do "Bab Septa" e na "Revolução Industrial".

Como pode ser mais sedentário e fixo, como é o caso de Entre Tempos e de "Quando a terra foge" por mais? Para mim são criações imaginárias, mas "Quando a Terra foge", acaba por ser uma criação imaginária.

Não é um mundo, ao contrário do "Revolução Industrial", em que é especificamente sobre um território que é o Vale do Ave.

Aqui também há uma presença desse território que é assumido, mas ao mesmo tempo há um cruzamento de tempos que dá uma liberdade formal e acho que leva o filme para outros lados.

Há um espaço e um tempo suspenso e eu acho que esta questão da relação com o espaço e com a forma como o espaço é ocupado é uma coisa que...e como lidamos com ele e como às vezes queremos ficar e temos que partir.

E como às vezes queremos partir e nos obrigam a ultrapassar barreiras completamente absurdas.

Pelos vistos já são 20 anos e com poucos filmes, não é? Trabalho como director de fotografia, trabalhei em mais filmes e trabalhei de outras formas."

E é co-fundador de uma cooperativa de cinema que é a Rua Escura, no Porto.

"Exactamente. Mas, por exemplo, é engraçado. Porque esta questão do eu quando fiz o "Entre Tempos" foi num contexto muito específico. Foi os Ateliers Varans e era uma situação que parecia urgente, que era uma coisa que estava a acontecer no momento e que ia ter um tempo e uma urgência muito forte.

O que acontece é que aquele território foi deixado ao deus dará durante 20 anos. E,  honestamente, por uma questão de especulação imobiliária, neste preciso momento, eu passei lá, curiosamente, há cerca de um mês.

Estão a ser construídos mais um quarteirão novo em Lisboa para uma classe social específica, claro.

Já acho que tem a ver com a própria transformação das cidades e o modelo de transformação das cidades.

Mas muitas vezes são coisas que se alargam muito no tempo por razões que ultrapassam o nosso próprio tempo. E a nossa própria perceção do mundo. Tem a ver com o funcionamento geral.

Acho que estamos a fazer cinema e as ferramentas são as do cinema. O desejo é o do cinema. E por mais que o cinema talvez não tenha capacidade de transformação das coisas, pelo menos acho que pode acrescentar perspetivas sobre elas.

E acho que é um bocado esse jogo meio misterioso que o cinema carrega, que também me faz mexer na vontade de fazer filmes."

Episódios anteriores

  • 2566 - Exploração de lítio em Portugal em filme em Cannes 
    Sat, 18 May 2024
  • 2565 - Crise na Nova Caledónia "é uma revolta anti-colonial" 
    Fri, 17 May 2024
  • 2564 - HRW denuncia a utilização de 'crianças-soldados' no ataque contra Macomia em Cabo Delgado 
    Wed, 15 May 2024
  • 2563 - Guiné-Bissau: Governo relativiza críticas e defende substituição de “mangueiras centenárias” 
    Wed, 15 May 2024
  • 2562 - Fórum económico promete recorde de investimento estrangeiro em França 
    Mon, 13 May 2024
Mostrar mais episódios

Mais podcasts de notícias e política portugueses

Mais podcasts de notícias e política internacionais

Outros podcasts de RFI - Noticiário em Português

Escolher género do podcast