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Decorre esta terça-feira, 14 de Maio, em Paris, a Cimeira Clean Cooking in Africa, cozinhar com recurso a energias limpas em África. Logo no arranque do encontro, governos e sector privado avançaram com promessas de financiamento que totalizam os 2.2 mil milhões de dólares para a transição energética da confecção alimentar no continente africano, actualmente dependente de combustíveis como carvão e lenha.

A cimeira organizada pela Agência Internacional de Energia, realizada na sede da Unesco em Paris, reúne mais de 1.000 delegados de quase 60 países. Em cima da mesa, estão os impactos na saúde e no clima da utilização de fogueiras abertas e fogões tradicionais. Além disso, discutem-se igualmente as diferentes possibilidades de transição energética.

A questão da “culinária limpa” tem ficado de fora das agendas climáticas. Quatro em cada cinco pessoas africanas ainda confeccionam as suas refeições em fogões abertos e tradicionais, com recurso a combustíveis poluentes, como o carvão ou a lenha.

A Agência Internacional de Energia defende que 2024 deve ser o ponto de viragem para a confecção limpa de alimentos em África.

A falta de acesso a uma confecção limpa de alimentos tem consequências para a saúde, para o clima e também para a igualdade de género. Quase meio milhão de mulheres e crianças morrem prematuramente em África, por ano, pela falta de acesso a uma culinária limpa. 

A Agência Internacional da Energia defende que para resolver este problema em África, até 2030, custa apenas 4 mil milhões de dólares de investimento anual. 

A participar neste evento está Evandro Gussi, presidente da União brasileira da Indústria da Cana de Açúcar e Bioenergia (UNICA). Ao microfone da RFI, Evandro Gussi explicou de que forma a experiência brasileira pode ser transferida para África e lembra que “a produção de bioenergia sustentável, sem desmatamento e sem competição com a alimentação, pode trazer para a África os mesmos ganhos que nós experimentamos no Brasil” e servir de alavanca “transformadora” para o continente africano.

RFI: Qual é a contribuição da UNICA para esta cimeira?

Evandro Gussi, presidente da União brasileira da Indústria da Cana de Açúcar e Bioenergia (UNICA): Todas as vezes que se pensa sobre transição energética, nós dependemos de inúmeras soluções e a UNICA, representando o Brasil nessa oportunidade, mostra a grande contribuição que o Brasil fez no desenvolvimento de uma cadeia eficiente e sustentável de bioenergia nesses últimos 40 anos, especialmente a partir do etanol, em suas várias formas de utilização.

Porque é que o bioetanol é melhor que o carvão e que a madeira? 

O etanol tem praticamente zero de emissão dos chamados materiais particulados, que são uma das maiores causas em termos de saúde pública, de câncer e outras muitas doenças a partir do sistema respiratório cardiovascular. Então, o etanol na mobilidade ou em qualquer tipo de uso, como por exemplo no Clean Cooking, ele oferece praticamente zero de material particulado, sem falar numa redução muito expressiva de CO2 e a inexistência de fuligem ou outros tipos de materiais e de emissões de poluentes que são danosos à saúde humana.

Como é que esta transferência de conhecimento entre Brasil e África pode ser feita?

O Brasil e a África têm muitas similaridades. O continente africano e o Brasil são geograficamente bastante próximos em termos de características de solo, de exposição solar, sobretudo, que são determinantes para um cultivo de biomassa produzido e utilizado de maneira sustentável. Existem muitas regiões africanas que são semelhantes às regiões agrícolas brasileiras e que podem experimentar a replicabilidade do modelo que a gente viveu no Brasil. 

Nós entendemos também que o que aconteceu no Brasil é a produção de bioenergia sustentável, ou seja, sem desmatamento e sem competição com alimento, pode trazer para a África os mesmos ganhos que nós experimentamos no Brasil. 

Ao lado das questões ambientais, nós temos uma questão socioeconómica muito relevante. Uma cidade, por exemplo, em que tem uma fábrica de etanol, o PIB per capita nessa cidade aumenta em mais de 1.000 dólares. É como se eu gerasse mais de 1.000 dólares de riqueza para cada pessoa da cidade. Nas 15 cidades em torno da fábrica, nós temos um incremento de 475 dólares. Imagina o efeito transformador que isso tem? Teve no Brasil, e efeito transformador que isso pode gerar na África, caso aplicado.

A questão da segurança alimentar não pode ser levantada, ou seja, para o fabrico dessa bioenergia, não pomos em causa o cultivo alimentar destas pessoas?

É o contrário. Na verdade, a FAO, que é a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, desenvolveu há cerca de 15 anos um conceito chamado IFES (Integrated Food-Energy System), sistemas integrados de produção de energia e alimento. E o que a gente desenvolveu no Brasil foi justamente isso: quanto mais energia a partir de activos biológicos, a partir da agricultura e da pecuária, eu gero no Brasil, mais alimento eu produzo. 

No caso da cana-de-açúcar, ela substituiu pastagens degradadas, com baixíssimo nível de produção alimentar por hectare. Quando eu transformo essa terra degradada em uma terra agricultável, junto com a rotação de cultura que nós fazemos - ou seja, entre o replantio da cana, nós temos outras culturas, como amendoim, milho, soja, feijão e assim por diante - gero hoje mais alimento por hectare do que gerava antes da cana-de-açúcar. 

No caso do etanol de milho produzido no Brasil, 100% vem de uma segunda safra. Nós plantamos soja em Novembro, colhemos em Abril. No mesmo mês de Abril já se planta o milho, que vai ser colhido em Julho. Ou seja, 100% do milho que eu uso é um milho que estará no mesmo ano, utilizando a mesma terra, mas já numa segunda safra. Ao lado disso, o milho não é milho, são quatro coisas: milho é amido, proteína, fibra e óleo. E nós utilizamos para fazer o etanol apenas o amido. Os outros componentes vão virar ração animal para nutrir bois, porcos, aves e até peixes, de modo que ao fim do dia eu vou ter mais produção alimentar, porque essa carne, essa proteína animal vai virar alimentação humana. Então, ao invés de eu ter um conflito de alimentação e energia, tenho o contrário, quanto mais energia gero, mais alimento consigo promover.

 

Para essa plantação não se corre o risco de deitar abaixo e abater árvores que são importantes também para esta questão ambiental e ao mesmo tempo o desgaste dos solos?

Quando falo de bioenergia sustentável, quando qualifico essa bioenergia, estou querendo justamente dizer que ela é feita sem desmatamento, ou seja, utilizando terras antropizadas, terras que já estão aptas ao uso humano nas últimas décadas e com alto nível de fixação de carbono no solo, longe de criar problemas para o solo. Ao contrário, nós recuperamos dezenas de milhões de hectares que estavam degradados em termos de solo e que foram recuperados, inclusive com fixação profunda de carbono nesses ambientes. 

Nós temos no Brasil, por exemplo, um Código Florestal que é extremamente rigoroso e que o sector de produção de bioenergia segue também com muito rigor. O Brasil tem problemas de desmatamento feito por criminosos, são desmatamentos ilegais, contrários à legislação e desconectados do sector produtivo organizado.

No caso da produção de etanol, no Brasil, nós temos um compromisso com o desmatamento zero, ainda que ele seja permitido pela lei florestal, porque nós temos uma política de créditos de carbono que não consegue conviver com a desflorestação.

Quando me refiro a bioenergia sustentável, estou qualificando essa bioenergia que é ausente de desflorestação e que não gera competição com alimento.

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